José observava o modo como seu avô cuidava das feridas daquele homem e mal conseguia respirar no mesmo ambiente por causa do odor de alcool que exalava do homem ferido. José ainda percebeu em seu bolso um cachimbo e uma substância que ele nunca viu alguma vez na vida, mas imaginava que era droga e lembrou dos alertas que faziam em Liturgia para não se aproximar de alguém que usasse drogas, como tudo aquilo era errado e abominável aos olhos de Deus.
"Não vos embriagueis com vinho onde há contenda" dizia o pastor que ocasionalmente era visto por José em seu escritório tomando uma taça que ele ganhava nas suas saídas diplomáticas da cidade.
Seu avô, percebendo o olhar duvidoso do neto perguntou:
- O que passa ness sua cabeça?
- Nada demais, vovô. Fico pensando quais pecados esse homem pode ter cometido pra cair numa desgraça de vida como essa.
- Coisas da vida...
- Mas não pode ser casual, deve ter alguma explicação.
- E qual você sugere, José?
- Reflexo de uma vida longe de Deus, de promiscuidade, de egoísmo. Se ele estivesse numa igreja, jamais estaria aqui sofrendo cheio de feridas e entorpecido pelo alcool e sabe lá mais o que. Esse tipo de coisa não acontece a quem serve a Deus. Porque Deus não permite que seus servos colham tais males.
- Então para você tudo se resume em plantar e colher, José?
Não seja tão binário. O sofrimento tem causas que talvez jamais possamos entender e estamos todos sujeitos a ele.
Deixa eu te contar uma história...
Poucos meses depois de sair de Liturgia, conheci um jovem, pouco mais velho que você, tinha um nome diferente, Jenz, e carinhosamente o chamava de Jota.
Jota também teve uma criação religiosa como a nossa, também tocava e cantava, ensinava a bíblia e tudo o que nós dois fizemos e fazemos.
Jota se casou jovem, aos 19 anos, com uma moça da igreja, virgens, tudo conforme regia o protocolo.
Ela cantava, ele tocava, os dois lideravam o grupo de jovens da igreja. A família de ambos também frequentava a igreja. O pai do Jota inclusive viajava bastante como missionário.
Tudo perfeitamente bem na vida deles.
Um dia, Jota teve uma reunião no trabalho que ocupou mais seu tempo do que deveria. Ele tinha culto de jovens naquela noite e não daria tempo de voltar para casa, pegar sua esposa e ir a igreja ensaiar para o culto. Então, ele ligou para seu melhor amigo, padrinho de casamento e também um dos líderes de jovens juntamente com ele e pediu ao amigo que passasse para buscar sua esposa em casa e encontraria com eles na igreja.
O amigo foi...
No caminho até a igreja, os dois foram surpreendidos no caminho com uma carreta que avançou na pista contrária e atingiu o carro onde estava o amigo e esposa vitimando-os ali mesmo.
Jota perdeu no mesmo dia o melhor amigo e sua esposa.
Ficou arrasado.
Reação mais natural possível. Mas em momento algum ele praguejou ou questionou a Deus por que estava sendo acometido a uma dor tão grande se em nenhum momento ele fez algo que pudesse merecer aquilo.
Pouco tempo depois, Jota ainda descobriu que tinha um câncer e logo começou um tratamento. Debilitado, frágil, sofrendo ainda a perda do amigo e esposa. Teve de ouvir do pai as mesmas palavras que você pronunciou, que dizem diariamente em Liturgia - Você está colhendo algo que plantou - "Está em pecado" dizia o pai, "Deus está tratando contigo", etc.
Pai este que se afastou ainda mais do filho para não se contaminar com seu suposto pecado.
Jota sofreu bastante com o tratamento que nunca teve efeito de fato, o câncer se espalhou e ele morreu aos 23 anos.
Morreu para os médicos, segundo o laudo do óbito. Morreu seu corpo frágil, esse mesmo que você e eu temos, que o tempo desgasta. Mas eu gosto de pensar que ele foi resgatado por Deus desse sofrimento e está agora mesmo junto a Ele. Conhecendo o amor de um Pai de verdade, numa intensidade de escala que jamais imaginaríamos existir. Que esse corpo frágil não suportaria.
Então, José... Eu te pergunto: O que fez ele de tão grave para ter tamanho sofrimento?
domingo, 19 de abril de 2020
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário