sábado, 28 de março de 2020

Evangelho ativo

Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus.  Muitos, naquele dia, hão de dizer-me: Senhor, Senhor! Porventura, não temos nós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres?  Então, lhes direi explicitamente: nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade.   Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica será comparado a um homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha;
Mateus 7:21‭-‬24 

Jesus está dizendo claramente que a maioria das coisas que se praticam dentro de um culto cristão não é parâmetro pra se definir quem verdadeiramente é ou não um cristão.
Nem todo aquele diz "senhor, senhor"...
Onde mais se usa esse termo?
Dentro dos templos, em cultos.
"Em teu nome profetizamos e expelimos demônios e muitos milagres fizemos também"
Onde mais se faz isso?
Dentro dos templos em cultos cristãos.
Apartai-vos de mim, os que praticam a iniquidade.

Jesus não reconhece tais atos como atos dignos de justiça diante dele, se tais atos não forem praticados no exercício da vida, no cotidiano, num mundo real. A vida cristã não se resume a isso.
O texto de Mateus é o final do sermão da montanha. A famosa síntese de Cristo sobre o evangelho do Reino de Deus.
Ele começa no cap 5 com as bem-aventuranças, situações facilmente aplicadas na vida.
Bem-aventurados os humildes; os que choram; os mansos; os famintos por justiça; os misericordiosos; os limpos de coração; os pacificadores; os perseguidos pela causa de Cristo.
Todas as situações acima são vividas diariamente em casa, no trabalho, na escola, na rua, no transporte público, na padaria, no supermercado, no elevador, etc.
Jesus ainda diz sobre amar aos inimigos e perseguidores, alertando que isso é um dever de todo aquele que se torna filho de Deus (Mt 5:45a).

Por séculos, a igreja tem resistido ao chamado ministerial de servir o Reino de Deus dessa forma. Os interesses pessoais tomaram conta dos cultos e já não há mais espaço para o serviço ao Reino.
As orações pelos perdidos, enfermos, presos, os solitários, os famintos, tem deixado lado pelos pedidos por um novo carro, uma promoção no trabalho, uma casa, uma viagem.
O hedonismo tomou o espaço do dever altruísta que era a chave do sucesso da igreja primitiva.
O hedonismo substituiu a "kenosis"; em outras palavras, o "esvaziamento" de si mesmo, de seus desejos, de suas vontades pra que o querer de Jesus inunda nosso coração
Até mesmo o famoso chamado apostolico descrito em Mateus 28:19 e 20 ("Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; Ensinando-os a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado; e eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos. Amém.") tem sido usurpado em seu sentido prático.
O verbo imperativo desse texto não é "ide", mas sim "fazei" e "ensinar".
Fazer discípulos e os ensinar a guardar a mensagem do Reino de Deus.
Nos ensinar que o evangelho precisa transcender os muros e portas de suas reuniões e se tornar ativo no seu dia a dia.

Uma mulher de 23 anos na universidade de Paris, escreveu certa vez em um de seus trabalhos acadêmicos o seguinte:
"Para mim, um cristão é ou um homem que vive em Cristo ou um impostor. Vocês cristãos não percebem que é com relação a isso - ao testemunho quase superficial que vocês dão de Deus - que nós os julgamos. Vocês deveriam irradiar Cristo. Sua fé deveria fluir para nós como um rio de vida. Deveriam nos contaminar com seu amor por ele. E assim, então, que Deus, que era impossível, se tornaria possível para o ateu e aqueles de nós cuja fé oscila. Não podemos evitar o choque, transtorno e a confusão que sentimos ao ver um cristão, que seja de fato, como Cristo. E não o perdoamos quando ele não é."

Essa mulher talvez não saiba, mas essa declaração revela o quanto a igreja tem se distanciado do exemplo da vida e obra de Jesus.
A igreja evita os perdidos, se tornou incapaz de andar com os necessitados, de amar ao próximo, ou como disse alguém certa vez "o cristão de agora não ama ao próximo, ama apenas seu semelhante"; não perdoam os inimigos. Todo tipo de gente inescrupulosa que Jesus visitou em suas casas, assentou em suas mesas e comeu com eles é exatamente os que hoje repudiam a Jesus. Mas por que? Porque não o conhecem de fato!
Não o encontram na face do cristão ocupado demais com seus próprios deleites.

Philip Yancey na apresentação de seu livro "Maravilhosa Graça" descreve um diálogo com uma prostituta onde ela cita o quão horrível é sua vida e o quanto ela se sente ruim, solitária, depressiva e quando confrontada com uma simples pergunta -Por que não procura ajuda em uma igreja? - Ela responde: Porque não quero que me façam sentir pior do que já estou!

A incapacidade de amar aos necessitados tem sido a principal fonte de derrota do evangelho.
Se tornou algo impossível para um cristão deixar seus juízos de lado e perdoar, amar.
Não preciso ressaltar que o maior de todos os mandamentos é amar ao próximo.
Ainda no sermão da montanha, Jesus alerta sobre amar até mesmo aqueles que nos odeiam, acrescentando: 

Pois, se amardes os que vos amam, que galardão tereis? Não fazem os publicanos também o mesmo? Mateus 5:46

Não é de se espantar que cristãos por vezes esquecem desse princípio fundamental que é amar. Ainda no primeiro século da igreja, João precisou alertar isso aos cristãos em sua primeira carta:

Irmãos, não vos escrevo mandamento novo, mas o mandamento antigo, que desde o princípio tivestes. Este mandamento antigo é a palavra que desde o princípio ouvistes.
Outra vez vos escrevo um mandamento novo, que é verdadeiro nele e em vós; porque vão passando as trevas, e já a verdadeira luz ilumina.
Aquele que diz que está na luz, e odeia a seu irmão, até agora está em trevas.
Aquele que ama a seu irmão está na luz, e nele não há escândalo.
Mas aquele que odeia a seu irmão está em trevas, e anda em trevas, e não sabe para onde deva ir; porque as trevas lhe cegaram os olhos. 1 João 2:7-11

João continua ensinando sobre os fundamentos desse amor genuíno e cristão, nascido no coração de Deus e manifesto em carne através de Jesus.

Conhecemos o amor nisto: que ele deu a sua vida por nós, e nós devemos dar a vida pelos irmãos.
Quem, pois, tiver bens do mundo, e, vendo o seu irmão necessitado, lhe cerrar as suas entranhas, como estará nele o amor de Deus?
Meus filhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas por obra e em verdade.
1 João 3:16-18

Quem não pratica o amor ao próximo, pratica apenas a iniquidade.
Em outras palavras, quem não vive o amor ao próximo, vive o amor a si mesmo.