segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Liturgia

Numa cidade distante do interior, em algum estado por aí, havia uma cidade chamada "Liturgia".
Era uma cidade bem pequena e afastada de outros lugares.
Havia um mercado, um açougue, uma padaria, uma igreja, e tudo que possa existir em qualquer outra cidade normal, mas sendo um apenas.
Havia, ali, também, três garotos que cresceram juntos, e eram muito amigos.
João, filho do prefeito, e que recebeu esse nome em homenagem ao seu avô; Pedro, filho do reverendo, e que recebeu esse nome em homenagem ao apóstolo bíblico Pedro; e o último deles era José, filho do mestre de obras, que recebeu esse nome devido um sonho que sua mãe teve em que ela segurava nos braços um menino que se chamava José.
Os 3 amigos cresceram recebendo todas as doutrinas religiosas que eram ensinadas na igreja onde o pai de Pedro pastoreava. Era uma cidade muito tradicional e que guardava os ensinamentos bíblicos recebidos de gerações passadas.
Quem ali nascia, ali também morria.
Eles imaginavam que saindo daquela cidade, se desviariam de Deus. Acreditavam que além das fronteiras de Liturgia morava o pecado.
Quando José completou 18 anos, resolveu que queria estudar, e tinha um grande desejo de conhecer outros lugares (esse desejo surgiu depois que ele encontrou uma revista antiga que mostrava fotos de belos lugares expalhados pelo mundo). José sempre guardou esse desejo dentro dele. Seus amigos diziam que aquilo era o Diabo querendo o levar para a perdição, mas José estava convencido que não havia nascido apenas para aquilo ali.
Os pais de José o amavam muito e respeitavam suas vontades, ele era um bom filho e muito responsável. Os pais o deixaram ir e ele se foi sem falar com muita gente, porque sabia que não aceitariam sua partida.
10 anos se passaram e José voltou para Liturgia.
Seus pais se alegraram muito ao vê-lo ali novamente, e ele também se alegrou ao rever seus pais.
José era agora um homem realizado, estudado e que conheceu vários lugares e pessoas diferentes. Sua aparência estava completamente mudada, já não revelava mais o rosto de um garoto do interior que ajudava o pai nas obras e a mãe nas tarefas de casa.
José se lembrou dos seus amigos e resolveu encontrá-los.
Teve uma enorme surpresa ao saber que João agora era vereador da cidade e estava preparando sua campanha para se tornar o futuro prefeito da cidade. E também, que Pedro agora lessionava nos estudos bíblicos de domingo e até pregava em alguns cultos.
Seus amigos ainda não entendiam porque ele havia saído da cidade e o viam agora como um perdido.
A forma como olharam para José não era mais como na infância. Aqueles olhares inocentes de crianças correndo com um sorriso nos lábios vindo da diversão que a infância os tivera proporcionado, havia dado lugar para os olhares sérios e mal encarados de duas pessoas que agora eram estranhas para José. Mesmo assim, José os recebeu com um forte abraço e a alegria de sempre.
Então José ouviu primeiro como os dois estavam e o que estavam fazendo (mas ele já sabia o que eles diriam, tudo naquela cidade era sempre igual, o famoso ditado "filho de peixe, peixinho é" era a maior realidade que eles tinham).
Depois deles haverem falado, foi a vez de José.
Ele contou para seus amigos como foi conhecer o mundo e que não era nada daquilo que eles ouviram durante toda a vida. Havia sim, muita crueldade e maldade, por muitas vezes os homens faziam outros sofrerem para terem aquilo que queriam, que enganavam e até matavam. Mas também havia uma imensidão de pessoas cheias de compaixão e sinceridade, que faziam o bem sem nenhum interesse ou por obrigação como era feito em Liturgia. Havia amor sincero e verdadeiro, de uma forma como ele nunca tinha visto.
João e Pedro ficaram perplexos com as coisas que José dizia a eles e não aceitavam e a cada palavra estavam mais convictos ainda que José havia se desviado dos princípios religiosos que recebeu.
Não havia possibilidade daquilo ser verdade, Liturgia era o melhor lugar pra se morar e seus princípios cristãos eram invioláveis, não existia no mundo um lugar que se comparasse.
Quanto mais relutavam, mais José falava sobre as coisas que conheceu.
Então José lhes falou sobre Cristo. Não o Cristo que ouviu por toda sua vida, mas o Cristo que ele pôde conhecer sem nenhuma prerrogativa religiosa, ou doutrina que conhecia. A forma como ele ouvia na infância muitas vezes fez com que ele tivesse medo de Deus. Era um Deus muito perverso e um Jesus com problemas de personalidade.
Ele falou como Jesus mudou sua maneira de ver o mundo fora da sua pequena cidade natal, e que não o via com um olhar de reprovação, medo, desgosto, repúdia, ódio. Mas com olhar de compaixão, misericórdia, cuidado, amizade, carinho, alegria e amor.
José conseguia agora amar as pessoas independentemente se elas tivessem ou não a mesma fé que ele tinha.
João e Pedro estavam atônitos e se enfureciam ao ouvir José falar de Jesus daquela forma. "Definitivamente ele está possuído" - pensaram a respeito de José. Eles se enfureciam com seu amigo, que agora já não era mais amigo, mas sim um inimigo, o maior inimigo de todos.
Tomados de uma repúdia infernal, João e Pedro tentaram calar José na marra, e com a força da sua ira traduzida pelos socos e chutes, cegados por sua vaidade ignorante e seu orgulho religioso que não os permitia ver que existia um mundo gigantesco e diferente daquele lugar escravizador.
José, ainda caído e com sangue escorrendo pelo seu rosto, prosseguia com suas palavras. Era a expressão de alguém que conheceu o sentido da palavra "vida". Mas era como veneno para os dois amigos.
Eles continuavam a golpear José, como se fossem juizes inquisidores libertando aquela cidade da possibilidade de um monstro aterrorizador invadir a mente dos habitantes.
Pedro, avistou um pedaço de tronco caído no chão, pegou e deu o último golpe em José.
A história foi contada a todos da cidade pelos dois homens que foram recebidos como heróis por haverem se livrado do jovem herege que abandonou Liturgia.
A história de José, João e Pedro, é contada até hoje para alertar aqueles que um dia pretendem sair de Liturgia para o mundo do "engano".